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O aposentado José Roque Carminatti, de 60 anos, lembra bem da crise hídrica de 2013, quando o estado de São Paulo teve de viver um racionamento. “Eram dois dias com água e dois sem por ausência de chuva. Quando tem escassez, a água fica mais cara”. Preocupado, o aposentado aproveitou a reforma da casa, na Vila Castelo, em Cidade Ademar, na zona sul de São Paulo, e implantou um sistema de captação da chuva com canos de PVC e uma caixa d’água – a chamada cisterna. Ele também passou a reaproveitar o conteúdo da lavagem das roupas: “Eu gastava 23 m³ por mês, hoje varia de 11 a 14. São quase 12 m³ de água que deixei de pagar por mês”, acrescenta.
A redução do consumo e dos gastos tem ajudado no contexto atual, quando a falta de água volta a preocupar. Em novembro de 2013, na véspera da crise de 2014, a média de volume dos mananciais em São Paulo era de 46,52%. Já no mesmo período de 2021 a média registrada foi de 37,88%, quase 10 pontos percentuais a menos. No Sistema Cantareira, o ano começou com 25% da capacidade, mostram dados da Sabesp, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo, que abastece a região metropolitana.
A situação mostra os efeitos causados pelas mudanças no clima e o receio de impactos maiores nas periferias da capital, que já começaram a relatar problemas no ano passado. A ideia de captar água da chuva ganhou força na última crise, mas ainda é uma realidade mais rara no ambiente urbano. As cisternas são tipos de reservatórios inspirados em piscinas de concreto e pensados para o contexto do semiárido, explica Beatriz Duarte Dunder, cientista ambiental. “Ela recolhe a água da chuva para ser usada no período de seca ou é abastecida por caminhão pipa”, diz. A finalidade do volume armazenado é variada, geralmente para usos que não envolvam o consumo ou o contato direto com a água.
Em 2015, o gestor de projetos socioambientais Sandro Nicodemo, de 41 anos, queria transferir o sistema de captura da chuva de seu antigo apartamento para a nova moradia na periferia de Santo André, na Grande São Paulo. Como precisava construir um muro, ele e um amigo permacultor projetaram uma parede funcional e a construíram durante uma oficina aberta no quintal. “Além de dividir o ambiente, com o passar do tempo cresceram plantas ao lado, cobrindo um pouco os tubos de PVC”.
Ele e José, que abre esta reportagem, destinam a água para lavagem de quintal, roupas e regar as plantas. Eles utilizam diariamente por meio da torneira acoplada ao sistema. Os dois tomam alguns cuidados. Quando há grandes intervalos sem chuva, José Roque lava a calha e em períodos de maior precipitação despeja cloro na água que fica armazenada nos reservatórios. No caso da cisterna de Sandro, uma tela no dispositivo evita o entupimento da encanação. Por fim, ambos deixam os reservatórios vedados pelo risco da dengue.
Beatriz explica que esses cuidados ajudam a manter a segurança microbiológica da água e previnem a entrada de animais, folhas e sujeira, mas reforça que é preciso ter atenção ao manipular produtos químicos. A ingestão e uso da água para banho não são recomendados, principalmente no contexto urbano, por conter material particulado. A especialista pede atenção também para o caso de reaproveitamento de caixas d’água. “É importante optar pelas que não possuam amianto em sua composição, substância que oferece risco a saúde”, conclui.
Sandro, que presta orientação para pessoas que desejam implementar o reservatório, revela que as pessoas não aderem por parecer complexo. “Qualquer pessoa consegue desde que tenha orientação e compre o material: caixa d’água, bombona, tubos de PVC. No youtube tem vídeos”. O preço pode ser uma questão. Sandro gastou cerca de R$ 1.200 para um sistema com capacidade de 220 litros, e José Roque desembolsou R$ 400 por um de 700. Porém, Beatriz afirma que há modelos mais simples, como galões, caixa d’água e a clássica feita de cimento – todos são considerados cisternas.
Segundo a especialista, pelos benefícios econômicos e ambientais, a alternativa poderia ser explorada nas periferias onde há insegurança hídrica, locais com intermitência e má qualidade da água. Contudo, ela acrescenta que o maior incentivo a esse tipo de medida ocorre no meio rural e que até o momento não evidenciou estudos que abordem esses sistemas em áreas urbanas. Para a questão do espaço e do custo, cisternas comunitárias podem ser uma solução para estes locais. “Com uma grande, em espaço comum que atenda a mais de um núcleo familiar, você consegue dividir esses custos entre mais pessoas que vão se beneficiar”.
Porém, ela alerta que não cabe aos moradores resolverem a falta de serviços de saneamento e abastecimento, pois há necessidade de políticas públicas. “É necessário pensar nessas práticas inseridas em políticas públicas direcionadas à população marginalizada para que não sejam penalizadas duas vezes, pela falta do recurso e por ter que construir suas próprias soluções. Água é um direito humano”
Sandro diz acreditar que a opção também é uma forma de protesto e uma medida que impede as famílias de tirarem o dinheiro da alimentação para pagar a conta. “Tem um rio passando por um local que não tem água na casa. Com a cisterna você usa e não paga por ela”. Ele também enxerga a possibilidade como uma potência nas periferias e aponta que é necessário uma mobilização de associações e grupos comunitários.
Por Agência Mural